Cassiano, o lobisomem do soul

Igor do Prado
4 min readMay 21, 2021

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Relato de um sonho. A entrevista que se concretizou. Diz que (que é como mamãe gostava de contar seus sonhos) eu entrevistava o Cassiano (1943–2021), autor de vários hits que saíram da boca de Tim Maira, Ivete Sangalo, Ed Motta, etc.

[Brasil, São Paulo, 2021]

Eu e Bianca, ainda grávida do Martín, voltávamos de um rolê, que não era o show do Cassiano. Foi um rolê chato, em que a gente tentava chamar um Uber e não conseguia, e isso nos deixava um pouco estressados.

Estávamos em um lugar que tinha muita gente conhecida e eu tinha um CD do Cassiano falso, uma cópia, que estava tocando em um aparelho e muitas pessoas iam trocando de CD. Era a casa de alguém.

Colocamos a cara pra fora dessa casa, pra tentar um sinal melhor pra chamar o Uber e eis que no bar ao lado, Cassino estava na porta. Ele tinha acabado de tocar, próximo dali. Ele estava conversando com uns caras da banda e mais algumas pessoas.

O bar: o dono era ninguém menos que o Valmir, o dono do Pompeu e Pompeia, situado na Rua Clélia, 233. O bar que promove a arte do encontro, dessa vez, até em sonho.

Fui cumprimentar e puxar assunto com um dos meus maiores ídolos da música brasileira. Ele, com ótima aparência, de cabelo bem arrumado, barba feita, camisa aberta, correntão de ouro no peito com poucos pelos e não tão sorridente.

Igor do Prado: Pô, Cassiano, eu adoro seu som, muito prazer, meu nome é Igor.

Cassiano: Pô, cara, que legal. Pouca gente me conhece, eu achei que tinham me esquecido.

IDP: Imagina, cara! Seus discos são dificílimos de encontrar. Você sabia que um disco seu na Europa custa até mil euros?

Cassiano: Tá de brincadeira! E eu não ganho nada com isso.

IDP: Olha, você me perdoa, mas eu tenho um CD seu, só que é cópia, pirateado. Até o encarte. Você se importa de autografar pra mim?

Cassiano: Não cara, que é isso? Eu sei que é difícil de achar. Por isso que ninguém dá mais valor pro meu som. Pode trazer que eu autografo.

Gritei a Bianca. Biancaaaa! Tem um CD do Cassiano dentro do aparelho, aí. Pega pra mim, por favor? [eu com medo do homem ir embora]

IDP: Cassiano, só um minutinho. Ela não tá achando, eu já venho.

Achamos o CD, mas não achava a capinha e o encarte, de jeito nenhum. Eu olhando o Cassiano, com o cotovelo no balcão conversando com o seu guitarrista (não era o Cláudio Zoli) e cumprimentando um ou outro que passavam.

Encontrei a capa, mais o encarte. Um pouco surrados. Fiquei um pouco envergonhado, mas levei e expliquei pro Cassiano, já me desculpando.

Quando cheguei na frente dele, vi o Valmir o atendendo e prestando atenção na conversa. Chamei o Valmir e contei quem era o Cassiano, mas eu nem terminei, ele já emendou “pô, Igor, conheço o cara! Ô, Cassiano, vem aqui tirar uma foto comigo!”

O mestre, envergonhado, disse “que isso, cara? Eu não sou ninguém. Quem é que pede pra tirar foto comigo?” Valmir, indignado: “Que é isso, cara? Digo eu! Você é um gênio da nossa música”. Pronto! Valmir mandou uma selfie e mostrou algumas fotos impressas de outros artistas que já estiveram lá.

Feita essa pequena festa, chamei o Cassiano.

IDP: Meu, eu já tentei tirar “Coleção” [uma das canções mais famosas de Cassiano, gravadas, inclusive, por Ivete Sangalo] de tudo que é jeito. Tive inflamação nos tendões, acredita?

Cassiano, ao som dos risos do guitarrista ao lado: ah, cara! Tem que treinar, ela não é tão difícil.

IDP: Os DJs vivem tocando seu som nas festas e baladas, sabia? “Onda”, por exemplo, é um puta sucesso nas pistas.

Cassiano, sorridente: Sério? É um som dançante, mesmo. Eu fiz pra isso.

IDP: Mas, me conta de você. Andava meio triste.

Cassiano: ah, eu to melhor, saindo de vez quando pra tocar, sabe? Às vezes aparece uma molecada em casa me chamando pra tocar, mas eu falo pra eles que eu não saio de casa por menos de quatrocentos contos.

IDP: Que isso, Cassiano!? Seu cachê deveria ser muito maior. Você é conhecido no mundo. Olha só: Eu já tentei te entrevistar, mas foi difícil te achar¹. Você ainda mora em Botafogo?

Cassiano: Não, cara. Agora eu moro lá no Oswaldo Aranha².

IDP: Eu queria saber daquela história do Erlon Chaves³, o maestro…

Cassiano vira a cara e dá um gole na cerveja. Fim de um sonho.

1: Em 2007, eu tentei entrevistar o Cassiano no Rio de Janeiro para o TCC da faculdade, sobre música preta brasileira. Mas só encontrei o Hyldon e o Gerson King Combo, e eles mesmos me diziam: Cassiano não tá legal, tá preso em casa, não quer falar com ninguém;

2: Que porra de lugar é esse?

3: Erlon Chaves (1933–1974), maestro negro de consagradas bandas de televisão e gravadoras. Foi encontrado nu em Botafogo, sem nem saber direito seu nome, após levar “uma bronca” de soldados da Ditadura Militar. O motivo da bronca? Beijar dançarinas na boca ao vivo, durante a transmissão de um dos festivais de música brasileira.

Ouvindo Cassiano? Há! Os gambé num guenta! [Racionais MCs — Vida Loka, parte II]

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Igor do Prado

Suburbano, comunicólogo e pensador caótico, entregue à música e às letras. Motivado por este fio que é a vida, derrubo palavras por aí, com amor e raiva.